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milhõesdefesta—firstlook[2012].txt

Barcelos aparenta ser uma pequena e pacata cidade de gente calma e de bem, que nada de mal fez ao mundo que fizesse merecer uma invasão de gente tão peculiar de gostos tão questionáveis quanto alternativos. Ainda assim, essa incursão irá mesmo acontecer e já este fim-de-semana, numa situação apenas equiparável à de uma frágil criança com uma infestação de piolhos. Um regalo inesperado mas celebrado por nós, os piolhos.

Chegar é fácil mas não indolor: se vierem de Lisboa, como eu, basta-vos apanhar seis meios de transporte no tempo recorde de seis horas e à sétima estarão a comer uma bifana mutante repleta de maionese numa esplanada barcelense enquanto bebem à pala de um estrangeiro com mais barba do que cara. Existe algo de divino neste acto, como uma ressurreição do corpo e da alma depois da provação da viagem. A chegada apenas se torna oficial quando nos prostramos num paraíso relvado e pontilhado de fontes verdes, festivaleiros seminus apanhando sol e tendas multicolor. 

Tecnicamente o Milhões de Festa ainda não começou — começa hoje, despachem-se! —, mas a organização fez questão de nos dar as boas-vindas um dia antes, com uma espécie de peddy paper de bandas a tocar um pouco por toda a cidade. Foi assim que descobrimos os Glockenwise logo ali ao lado no mercado, os Käil numa rua apertada atrás de uma loja de ferragens, as meninas da Red Bull a distribuírem energia e bonitos decotes, ou os Aspen numa difícil busca por um largo com um fontanário, e cuja existência até mesmo as duas guias locais que arranjei desconheciam. Dizem-me que os Cálculo também tocaram, mas por essa altura estava recuperando energias, como quem diz ocupado a degustar uns rojões típicos e um vinho carrascão. 

A penumbra cai lenta e embala os barcelenses rumo a casa, muitos apanhados de surpresa pela música e pelas caras estranhas logo ali ao lado do local de trabalho, mas sempre muito disponíveis e bem-dispostos. Já os festivaleiros são levados pela brisa até a beira do rio, a propósito de uma patuscada com caldo verde, chouriço e finos mil, estreando o novíssimo Palco Taina, erguido sobre o miradouro de pedra com vista para as cataratas do Cávado, e onde ainda me lembro de ter abanado a cabeça com Johnny Sem Dente e na segunda ronda de Glockenwise, antes mesmo de um rodopio de luzes (acho que faltou a luz a determinada altura) e cores e gente fazendo mosh durante Gnod. 

A noite fica difusa a partir daqui, com gente aleatória a rir abraçada a mim rumo ao campismo, eu a rebolar pela relva do parque de merendas, de cair de cu na tenda até ser acordado às cinco da manhã pelos tipos da página Ser Português, claramente bêbedos e chatos, a gozar com um jornalista qualquer por não conhecer banda nenhuma. Bem-vindos a Barcelos, isto é o Milhões de Festa.

loswaves[2013].txt

No universo que separa Tame Impala e Melody's Echo Chamber, e onde se possam cruzar com Best Coast ou Beach House, ícones de uma sonoridade lo-fi caracteristicamente árida, quente e deliciosamente sufocante, ora dançante, ora desgarrada, existe areal mais que suficiente para fazer emergir o revivalismo das dunas e das runas edificadas nos anos 60 e 70, revestidas de cânhamo e destiladas pelo psicadelismo e amplitude de influências, de movimentos e de vontades. 

Autênticas miragens por entre esta mescla de saudosismo ruidoso e libertino, os portugueses Los Waves chegam diretamente de Londres para apresentar o seu primeiro EP, tão difícil de largar como a resvalada de guitarra intercalada de xilofone dos minutos iniciais de "Got a Feeling", single de apresentação, expluda nos nossos ouvidos sem nos imaginarmos semi-nus num qualquer cenário solarengo e balnear, a dançar e a saciar o pequeno hippie utópico que todos guardamos dentro de nós. 

Desenvolvendo uma mística muito própria e uma atmosfera flutuante e festiva, que bandas de singles como os norte-americanos MGMT provavelmente gostariam de conseguir roubar, os Los Waves vão tecendo epinícios ao calor veraneante e à leveza do ser com intensas e alegres harmonias electrónicas e um ritmo constante e de semblante tribal, tão saudosistas quanto necessários quando lá fora estão uns gélidos catorze graus. 

Vêm à memória tempos idos e vividos no Milhões de Festa, quando em 2012 uns desgrenhados League subiam ao Palco VICE numa bela e cálida noite junto ao Cávado, e em que houve, a espaços, rasgos de magia ácida e amor no ar. Um ano depois, a banda de José Tornada e Jorge Ribeiro adoptou outro nome, mas continua uma demanda de descoberta melómana que esconde muito trabalho de bastidores e muitas viagens entre Londres, Portugal e Califórnia. Por ora agarraram a atenção da imprensa internacional, estão referenciados desde aqui até à Austrália, e estarão no Vodafone Mexefest já no final desta semana. Espera-se agora que confirmem o hype e o potencial com um álbum completo, até porque este EP deixa demasiada água na boca e ecos no ouvido.

sequin[2013].txt

A ainda curta narrativa de Sequin, a mais recente e cintilante pérola do cenário musical independente, interliga-se estruturalmente com a de Jibóia, o encantador de serpentes com farto bigode e ainda mais insinuante sonoridade, temperada de especiarias. Ao festival de salsicha que aprendemos a reconhecer de forma próxima ao coração como colectivo Coronado, juntou-se o deleitante sorriso e cristalizada voz de Ana Miró, pela porta do projecto a solo do Óscar Silva. Desta muito natural simbiose resultaram viciante portento sonoros como "Tuareg", discutivelmente a música do Verão de 2012, que tantas filas pirilau e abanos de anca veio provocar. 

A Miró é uma alentejana de gema com raízes na música e no canto lírico desde muito nova. Não nos devia surpreender por isso a sua notável experiência ou a facilidade com que nos veio arrebatar, por entre os meandros com que afinal cresceu. O que espanta ao fim ao cabo é a sua voz refinada e a sua presença assertiva e sorridente, afinal verdadeiros cunhos da garota com ar afável que se solta completamente a partir da primeira nota, da primeira batida. Era apenas uma questão de tempo, sabíamo-lo todos os que a viam então, até que os concursos ganhos com os Ballis Band ou o estatuto de sidekick de Jibóia se tornassem demasiado pequenos para a identidade que estava por assumir. 

Um ano volvido desde que primeiro ouvimos a intoxicante "Beijing", música tórrida cuja audição repetimos de forma incessante desde então, aguardamos com expectativa à promessa do lançamento do álbum a solo e em nome próprio de Sequin, querendo mais e mais das histórias a que dá voz e da dream pop delicodoce e vibrante que tanto nos seduz.

filhodamae+ricardomartins[2016].txt

Prolíficos em aventuras e colaborações, Rui Carvalho e Ricardo Martins são dois dos músicos mais proativos e interessantes a povoar a praça lisboeta. Um duo incansável de artistas com um talento gigantesco e cuja destreza com um instrumento nas mãos nos deixa sempre de boca aberta, pese o inuendo óbvio, e cuja união será sempre um choque de gigantes.

O Rui é há mais de dez anos uma das personagens mais reconhecíveis atrás de uma guitarra, seja ela elétrica ou acústica. Foi durante imenso tempo um ímpeto do extravasar sónico, figurando no alinhamento dos aguerridos, barulhentos e míticos If Lucy Fell, imediatamente atrás das acrobacias do Makoto. Mais recentemente tem explorado com bastante e justo sucesso um dedilhar solitário e expansivo sob o cognome Filho da Mãe, um projeto muito mais tradicional e de pés assentes na terra, que lhe permite mostrar toda a sua destreza e criatividade.

Em paralelo, o Ricardo ganhava relevo enquanto máquina incansável de pancada em timbalões e pratos, como baterista dos Lobster, duo de ruído caótico e explosivo. Reconhecidamente um tipo muito afável e disponível, a sua ética de trabalho e constante necessidade de criar fez com que viesse a abraçar todos os projetos que o tempo e o corpo lhe permitissem agarrar — emcabeçando a composição explorativa dos Cangarra ou a emoção desgarrada dos Adorno, e as suas mais recentes extensões, os tropicais Papaya e os juvenis NOZ², para além de ter aberto o seu próprio gabinete de design com a namorada, a Desisto, e tenho a impressão de que está ainda do outro lado da minha janela a olhar para mim enquanto escrevo este texto.

As suas carreiras viriam a interligar-se oficialmente, de forma descomprometida e natural, algures em 2010 quando integraram o alinhamento dos I Had Plans. Assumindo os rótulos de tudo o que há de pós no hardcore, sendo uma das últimas bandas da altura a explorar esse estilo, a banda de origem lisboeta contava com um notável alicerce instrumental a sustentar com uma exatidão quase matemática os vocais arranhados e fugazes. Viriam entretanto a fazer jus ao nome, não confirmando os planos que haviam feito e extinguindo a formação pouco depois.

Nesta noite fria e invernosa de fevereiro, chegamos ao Cais do Sodré com as expetativas clara e compreensivelmente elevadas para assistir a novo encontro de titãs. O ambiente familiar sente-se horas antes, quando passamos no clássico Pérola de São Paulo para um copo e os encontramos tranquilamente jantando. Também ali estão o Iúri, aquele que era o vocalista dos I Had Plans, e que hoje estará encarregue do som, e também o Óscar, o segundo guitarrista da banda e curiosamente um moço com quem partilho o dia de anos, que entretanto galgou o seu próprio caminho na música, na pele reptiliana do exótico JIBÓIA.

Através dos vimaranenses Revolve, Filho da Mãe e Ricardo Martins juntam-se para lançar uma edição em preparação há quase um ano, e que já conta com diversos concertos marcados, a que chamaram de "Tormenta". Uma coerência que se viria a sentir sonoramente — cada música segue um guião certeiro e progressivamente mais ruidoso, assentando uma urgência taxativa e crescente. Se reconhecemos uma brita dançável em "Estrela e Acabada", dominada pela infusão harmoniosa da bateria na progressão da guitarra, somos depois transportados para uma hipnose melódica em "A Tia Dela", ou aos contrapassos de um prato difícil de digerir em "Truta Salmonada".

Ao vivo, a bateria musculada ganha no braço de ferro imediato, subjugando as cordas para segundo plano. O Ricardo é um baterista tremendo, com uma força e ganas enormes mas segurando a baqueta com toda a segurança e mestria, convulsionando freneticamente aos nossos olhos. Mas o Rui não lhe fica exatamente atrás qualitativamente e a sua destreza no dedilhar cuidado e turbulento é impressionante, de forma natural e em perfeita sinergia e simbiose com o primeiro. A espaços conseguimos ver onde se apoiam e onde competem, onde o esgar de conquista rapidamente se transforma num apoio imediato, um baile que não acompanhamos por completo mas que nos deixa tão felizes de presenciar.

A família aparece gradualmente para festejar com eles — Cláudia Guerreiro, baixista de carreira comprovada nos Linda Martini e recente mãe do filho do Filho da Mãe; Norberto Lobo, guitarrista de eclética formação e habilitações igualmente elevadíssimas, embora um explorador mais aventureiro; o saudoso Shela, que vem enquanto o seu projeto LAmA, e o próprio Óscar, aqui já mencionado, fechando a noite. O público grita-lhes, sorri, dança e agita-se no emaranhado inebriante, tornando-se outro membro efusivo deste encontro familiar, num cenário de euforia incrivelmente festivo e bonito que apenas peca por ter um fim.

sleepysun[2014].txt

Na noite de glória do mundo da moda que saiu às ruas da baixa, das travessas de croquetes de camarão e dos copos chiques de espumante, das meninas equilibristas em saltos mais altos que andas e dos meninos em camisolas de alças três números acima, o desfile sufocante de after shave caro, laca e óculos de sol usados de noite não se fez parar e entrar pelas portas de saloon do Musicbox, seguindo esta rua pintada recentemente de cor-de-rosa abaixo para paragens menos áridas e secas.

Quem deixou as portas abanando indefinidamente na noite passada foram os Sleepy Sun, quinteto norte-americano que chega a Lisboa para os primeiros concertos de uma tour europeia de apresentação do álbum que lançaram no início do ano, "Maui Tears". Serão sete países diferentes em apenas um mês, com segunda paragem marcada já para a tarde de hoje em Valada do Ribatejo, seja lá onde quer que isso seja, onde subirão ao palco da primeira edição do festival Reverence, uma ode ao psicadelismo e uma maratona autêntica de bandas e artistas, e onde partilharão backstage com Electric Wizard ou Mão Morta.

Apertando-se entre numerosos instrumentos e elementos no pequeno palco do espaço lisboeta, a banda fê-lo transbordar de uma acidez arrepiante e hipnótica, imediata e confortavelmente assente em volumosas e cortantes guitarradas, que oscilavam e dançavam entre si, guiando-nos entre a languidez escoante e o fuzz arenoso e desgarrado. Um autêntico cocktail que vem misturar elementos tórridos dignos do deserto de um qualquer western americano, e os interliga a animadas percussões tribais e a deliciosos apontamentos harmónicos, quase como se de um ritual festivo se tratasse, com poucas pausas ou diálogo, uma degustação quente e pesada e sem pausas para respirar. 

Os quase dez minutos da insinuante "Sandstorm Woman" são o ponto mais alto do concerto, insinuante senhora que nos seduz em dança lenta através das cordas sinuosas, do zéfiro da harmónica e do pulsante baixo, que nos toma o âmago e a mão para uma dança sem presença corpórea, no tema que fecha o aclamado "Fever", de 2010. O bastante requisitado encore traz-nos o clássico "New Age", faixa de abertura do primeiríssimo álbum da banda e para muitos de nós o primeiro contacto, chamando-nos a voz de coro antes de agitarmos violentamente a cabeça, num saudosismo primal reminiscente desse longínquo ano maravilha de 2009.

plasticflowers[2013].txt

Tive o prazer de conhecer os gregos Plastic Flowers quando, numa noite bastante tenebrosa e chuvosa de inverno, se uniram aos saudosos SAUR para trazer música calorosa e inebriante ao Primeiro Andar do Ateneu, bem no centro da capital. Estavam no início de uma tour que aqui os trazia antes de os levar a passear pelo norte do país, à boleia da Cakes and Tapes, e seguiriam então para os Estados Unidos, onde viriam a actuar um pouco por toda a costa este, com especial ênfase para a presença no SXSW.

O simpático Diogo, responsável na altura pela promotora e exímio descobridor destas bandas que ninguém conhece até toda a gente conhecer, tinha-me incumbido de os receber e fazer sentir em casa. Lembro-me de lhes pagar uma cerveja, de fazer a associação óbvia com a crise económica de ambos os países, o nosso e o deles, a reboque das intervenções do FMI e das preocupações políticas que invadiam o espaço público, até porque acontecia uma greve de transportes públicos nesse preciso dia. 

Lembro-me também de os achar rapazes ansiosos mas afáveis, nervosos e formais, mas com aquele brilho nos olhos de quem tem muito a mostrar e poucas inibições para o fazer. Entusiasmados pela primeira tour internacional, e com o terceiro EP na bagagem, lançado um mês antes, fizeram a muito bem composta sala de gente resfriada e molhada esquecer o Inverno que lá fora atacava, para nos mostrar um pouco da ambiência da costa veraneante e dreamlike grega.

Faz sentido relembrar esta passagem pois o novo [2013] e quarto registo, "Evergreen", foi imaginado nos tempos mortos desta tour, em aviões, comboios e autocaravanas, e gravado nos meses seguintes entre o Londres e Atenas. A experiência terá abrido horizontes e feito explodir a criatividade do duo, resultando numa fluidez muito orgânica, sensível e natural. A introversão das experiências anteriores dá lugar neste trabalho a uma abertura de notas e harmonias, a uma nova alegria que não lhes reconhecíamos tão imediatamente, agarrando a vertente dream-pop com mais força. 

Como o próprio nome indica, este é então um LP optimista e bem-disposto. Regista o amadurecimento dos gregos e o que de potencialmente melhor o lo-fi tem na construção do ambiente. Um registo muito menos lânguido e arrastado do que esperariam aqueles que os ouviram há sete ou oito meses em Lisboa, sem que se perca a identidade de uma banda que se demarca pela construção de camadas de ruído de grande profundidade e sensibilidade sonoras.

elysianfields[2014].txt

Não sou fã nem apologista da expressão "é já hoje que"

Não tenho qualquer formação em línguas, para além daquele workshop de escrita criativa que completei certa vez durante dois fins-de-semana há demasiado tempo atrás e da parca experiência que tenho em sexo oral, referencialmente desajeitada, mas tenho tanto de amador como de amante da prosa, e sou dedicado o suficiente para que o vazio sem sentido de certas expressões como a acima referida me façam perder o interesse de imediato, nem mesmo se o prólogo seja "se concretiza o dia mundial sem soutien". Em todo o caso, no dia em que tal se realizar, tenho mais interesse em sair imediatamente de casa do que ficar a ler sobre o assunto.

Não obstante o parágrafo acima, o cerne da questão é que hoje é mesmo o dia, e a razão da sua importância é o lançamento de um novo álbum por parte dos nova-iorquinos Elysian Fields, intitulado "For House Cats and Sea Fans", ou para quem não consiga discernir o norte-americano, "para gatos caseiros e apreciadores do mar". E calha eu pertencer a um destes campos.

A banda composta pela sensualíssima Jennifer Charles e pelo talentoso multi-intrumentalista Oren Bloedow atingirá no ano vindouro a bonita marca de vinte anos de carreira, vinte anos esses repletos do mais sinuoso e sedutor noir rock alguma vez ouvido e sentido, vinte anos com os olhos semicerrados, o dente no lábio e o coração palpitante.

A progressão sonora da banda, discutivelmente despercebida fora da sua cidade natal mas por obra do acaso tão bem recebida por terras mediterrâneas, quiçá pelo clima temperado, desenvolve-se de forma selvagem pela provocação e pela insinuação, através da subtileza, da poesia, e do alongar por faixas que ora nos fazem suar de tamanha sensualidade, carregados pela arrebatadora delicadeza da voz de Charles sobre os instrumentais tensos e envolventes de Bloedow, ora nos arrastam pelo peso da emoção e o embalo da vida.

lalalaressonance[2013].txt

Tive na faculdade um par de professores de design que adoravam jazz, tanto que interompiam as aulas para nos mostrarem os seus artistas preferidos e o que para eles significavam. O primeiro, sempre muito certinho na sua camisa azul por dentro do polo de malha, idolatrava Miles Davis, John Coltrane e os clássicos; o segundo adorava soltar o corpo e a mente nos corredores, numa desgarrada improvisação em cassette difusa de um qualquer artista por descobrir e que hoje estaria no cartaz do Out.Fest. Na mesma altura tive a sorte de conhecer colegas, músicos e estudantes de música, que olhavam o jazz como a sua maior influência, que o usavam como matriz e que o absorviam com um brilho nos olhos e uma sede imensa.

Para todos eles, jazz era vida. E eu, um completo imberbe no que àquele ou mesmo a tantos outros temas de vida se tratassem, olhando até ali de fora para o que eles sentiam de coração, fui descobrindo durante esse verão toda uma palette de cor e som e sentimento e entrosamento e revolta e alegria e comunidade, entre a música de elevador, o Charles Mingus, o Thelonious Monk, o Chet Baker, o Cowboy Bebop e os Badbadnotgood. 

Convidaram-me então para a festa de lançamento do segundo álbum dos La La La Ressonance, que ia gostar depois desta lavagem toda, e eu não me fiz de rogado, apesar de o nome me remeter para uma banda de gajas aos gritos sobre um qualquer drone industrial. Na noite lisboeta achei-os jovens, achei-os atrevidos, achei-os bailarinos e dançantes, brincalhões e leves. Foram possivelmente uma das primeiras amostras locais que tive de como o balanço e a fluidez do jazz que tinha admitido naqueles meses, se podia diluir, misturar e influenciar a cena rockeira, numa altura em que a equação matemática e o punk dominavam o Tejo e Barcelos fervia em fogo lento quase em ebulição.

No ano passado [2012] tive então oportunidade de os reencontrar no Milhões de Festa, a jogar em casa e com um novo álbum na algibeira, e não obstante a carga de festival, a noite gélida, o escaldão de corpo inteiro que trazia da piscina e que me ardia na pele, ou o álcool que me fazia balançar entre palcos, distingui-os enormes, crescidos e amadurecidos. Menos brincalhões, mais contemplativos, deambulantes, tocando faixas eternas que faziam por explorar o universo aparentemente infinito entre o rock progressivo e introspectivo e o jazz corpulento e melancólico, e que fizeram soar tão expansivo e ecoante contra as margens do Cávado. 

evols[2012].txt

No longínquo ano de 2011 surgiu nas redes sociais uma publicação que expunha uma das promotoras com maior poder e visibilidade no nosso país — e cujo nome não convém mencionar, pois é a Everything Is New — por esta colocar em causa o valor e o estatuto da música portuguesa e dos seus artistas. Numa animada troca de e-mails, a promotora em questão oferecia valores irrisórios e condições questionáveis para participação no ato de abertura de bandas internacionais, e reagia com indignação a respostas de negociação, inferindo que o contacto não seria mais que mera caridade.

Embora sem consequências para a empresa, para além de uma onda de indignação que durou tanto como a minha atenção a ver um episódio de Friends, a banda que sofreu este tratamento acabou por conseguir transformar um episódio de péssima memória num ponto positivo de viragem, beneficiando da visibilidade que inadvertidamente haviam ganho para expor o seu talento e música e ajudar a alavancar a sua carreira. 

São eles os Evols, ruidosa banda de Vila do Conde que conseguimos equiparar à Comboios de Portugal, numa qualquer viagem noturna e soturna em que estendemos as pernas pelos bancos vazios sem conseguir distinguir o que se passa lá fora, e entre o cansaço e a apatia uma nebulina difusa e pendular se instala e nos leva numa viagem que nos rompe o âmago. Um shoegaze psicadélico áspero mas delicado, que cria formas e ambiências nas janelas a cada nova rajada, e nos embala num emaranhado belo e confortável até abrirmos os olhos e termos percorrido todo o álbum em menos de nada, acordados pela senhora da limpeza na estação terminal.

papaya[2014].txt

Do triângulo escaleno desenhado no imaginário pelas agudizadas diferenças geográficas dos membros dos defuntos Adorno, que se esticam e desdobram em viagens entre Nova Iorque, Barcelona e Lisboa, emergem os transatlânticos Papaya, fruto tropical que se abre de encontro ao cocuruto e se degusta em violentas dentadas, numa explosão de sabor intempestivo.

Um sonoro grito do Ipiranga evocado enquanto em corrida desenfreada imediatamente antes de um salto de cu para a água que inunda os insuspeitos veraneantes em redor e suas chaise-longues, Papaya é a celebração entusiástica de um clima tropical ardente na forma das mais desgarradas guitarradas e das mais hipnóticas percussões, e um manifesto punk de bermudas e havaianas.